Natimorte

Eu, senhora Dorotéia, te convido a me seguir ao parque municipal, hoje, após acordar. Tome teu chá em paz, atente ao som do ônibus – pois sabes que é quando as lojas abrem suas vitrines às ruas como crianças desabrocham os olhos ao teto. –  Restam dois biscoitos que ao chá caem bem. E deixe que caiam, dissolvam-se as fibras e seu sabor respire livre desenclausurando-se aos poucos de sua forma fixa. A pedra que lhe emprestei, minha senhora, sabes onde está e traga junto. Não creio que os outros notarão maior peso num bolso ou n’outro; Venha depressa, há todo o tempo do mundo no som do eco de cada passo, marque os pulsos de teu coração que te tornam mais humana a cada ideia que caminha contigo. Agora só há teu trajeto interior, madame, entre lixeiras vazias, telefones públicos em desuso, ao som acelerado de vassouras de palha; Sei que sentirás a plenitude do movimento à pé e é por isso que sem que eu lhe recomende, os ônibus naufragarão abandonados nas xícaras do chá morno que borbulha agora em teus rins. Do outro lado da rua ensinam inglês e tu te esqueces disso ainda que leias o nome do cursinho  em um adesivo pregado ao chão, mudo, burro, inconfiável a teus pés. Teus pés, em samba mórbido, avenida abaixo. Abaixo. Abaixo. Àfonso Pena, afrente, o concreto jorra em cascata, cirurgicamente, desenhando a direção que os pensamentos evitam. Pode ser que te perguntem se estás perdida. Eu mesmo não saberia dizer onde te encontras mais, mas tua imaginação, Dorotéia, cara, é um farol apontando a todas as direções. ” O que é um porto seguro?” agora que promoções de viagem jogam-se dramáticas ao vento cinzento. Porto Seguro, boa mulher, é onde os pés se despem dos calos. Dos que crescem e também dos que estão para nascer. Não te distraias com as árvores. Querida, elas não te acompanharão, pois nada têm em mente. Quando acaricias seus nós, não calculam a simples hipótese de que uma copa de cachos, como a tua, concede a semente e colhe as flores, simultaneamente, em lugares diferentes. Hei de gastar-me o resto da vida nesse bosque hominídeo cultivando minhas raízes; venha depressa, jovem mulher.

O tempo entre um semáforo e outro carrega em seu dorso a ascensão e queda das civilizações. Carrega sagas de heróis, a espera até as colheitas, a evanescência de velas. Carrega o insight que levou à primeira bússola, o maravilhamento diante do que mostra a luneta. Também comporta o instante do tiro, a leitura de enciclopédias sobre enciclopédias. A confiança  no que mostram os telescópios, que enganam, o efeito do café, que engana. A explosão da bomba de hidrogênio e do motor à gasolina, que arranca e te faz esperar quando a pressa acaba de te parar de parar: Desesperada! Tudo irá te consumir a visão; cada bocado de memória desemboca no vácuo que os carros deixam ao passar: espalham-se como propagandas. Nos escritórias ao redor; muita cautela. Homens e mulheres escrevem, esquecem-se da razão e da noção de que escrever é rememorar nas ondas da tinta a razão de se sentir-se bem por entre as ondas do mar. Garota, muito cuidado; a maré te puxa. Cambaleando por entre calçadas descascadas, choverás tua consciência janelas a dentro a fim de molhar os corpos e principalmente as almas. Calma! Águas profundas abrigam vozes que desconhecem a superfície; ouças apenas a minha enquanto ouço apenas a tua. Entre no parque, doce criança. Persiga pelos seguros caminhos das  formigas os rastros de minha experiência muda. Há uma pesada pedra em seu bolso que pertence ao lago. Devolva-a a seu ventre e costure teu olhar lânguido ao jorro que se eleva, momento em que eu e você, juntas destruímos o tempo que nos separa pelo espaço que nos conecta. Investigues por onde eu poderia ter passado; por onde eu investigaria meu passado eu veria vestígios do instante em que eu fantasiava teus primeiros passos, passarinha. Venha! caminhe até aqui e te deites ao meu lado. Vês como é bom o sol cálido lá encimão enquanto tua mão toca a terra fria e molhada? Olhe nos meus olhos, pequena, bem aqui nos meus olhos. O que você vê? O que será que  mora nessa escuridão? Sente meu vazio? Isso, toca meu seio fraco. O que resta de mim aqui dentro? onde fui parar?

Se temer penetrar as trevas do meu corpo frio, menina, não é preciso ultrapassar a superfície. Ela sim reflete a vida, plácida, das árvores. Minha pele, ainda que morta, se aquece com as manchas do sol que perfuram e rasgam as folhagens. Entenda meus olhos como espelhos; veja-se neles e verás o que resta de mais vivo em mim. Basta saber que transbordo vida mesmo quando o sol me apaga: atrás de ti há um lago de águas douradas em que nado todos os dias de minha infância. Há um desejo único que me manteve viva e que agora é a substância que desenha minha retina. Morro sepultada pelo som do seu primeiro choro, meu bebê. Lampejo único de sua voz, que calei durante sua jornada até mim. Sua inconsciência, rebento da minha, vaga no cosmo embora sempre orbite o lugar de onde nunca saiu. Deitada a frente de meu seio fraco. Ligada a mim por essa delicada ponte de carne, sangue e algo que não se nomeia.


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